domingo, 18 de abril de 2010

JAIR MENDES, o lado humano do sagrado

Em toda a história da arte, alguns artistas importantes permaneceram aparentemente insensíveis as ideologias modernas triunfantes ou ás caricaturas das vanguardas, mas a tradição que Jair quer manter é uma vanguarda em forma e de resistência ao academismo imposto pela dominação das próprias vanguardas, Jair Mendes é um pintor figurativo, mas no conceito de Einfuhlung de Worringer, para quem toda a arte tende a abstração, e é por isso que para ele, a ruptura das vanguardas com o metier do pintor, soa como blasfêmia.

Foi sempre tido como um artista rebelde por não se acomodar com o pré-estabelecido e por seu inconformismo com injustiça do mundo. Ainda estudante da Escola de Belas Artes, participa da revolta dos artistas em 1957, expondo com eles, pinturas, desenhos e gravuras no salão dos Pré-julgados, que deu inicio ao chamado Movimento de Renovação das Artes Paranaenses.

Seu mestre Guido Viaro elogiava principalmente sua dedicação nas aulas de modelo vivo, mas dizia que ele pintava fazendo barulho e Jair continuava fazendo barulho, é sempre polêmico, mas defendendo suas idéias: “nasceu para abolir o tempo e demolir compromissos”. Mas toda discussão acalorada acaba sempre numa grande amizade e numa mesa de bar. É o eterno boêmio que se embriagava pela atenção que da ao seu universo, sempre preocupado com as pessoas que estão á sua volta e com elas ri ao chora.
É considerado um dos artistas mais fielmente matem a figuração “expressionista” seguindo o veio riquíssimo que foi explorado inicialmente por Viaro, mas é também uma classificação que não tem muito a ver com Jair; ele escapa a ela sem, no entanto o expressionismo lhe ser estranho, principalmente nas suas soluções plásticas. O “expressionismo” de Jair Mendes é rebelde e explosivo, por isso alegre e colorido.
É alegre por natureza, mas gosta de pintar a dor e a tragédia social. Pinta como um cristão que o espetáculo do pecado o revolta, que também foi ferido pelo espetáculo da miséria. Sua inspiração é normal, cristã, religiosa, mas não sagrada, ela é a indignação dolorosa em face da decadência humana e resultado da raiva que lhe inspira a hipocrisia. Assim ele nos lembra Georges Rouault quando disse: “ Se eu fiz, na visão dos meus críticos, figuras tão lamentáveis, é que eu traduzia sem dúvida e angústia que eu sinto ao ver o ser humano que deve julgar outros homens”.
Jair é desenhista e o pintor da condição humana, do herói e da vitima, do amor e do ódio, da alegria e da tragédia, do humor e da tristeza. O que conta é a sua espiritualidade amadurecida nas formas de um dramático existencialismo católico. Toda a sua obra tem um sentido de meditação, os personagens desfigurados ou transfigurados se situam fora do tempo e refletem um mundo interior onírico, formado pelo realismo trágico de homens e mulheres que por suas vezes, também eles, estão em introvertidas meditações sonhadoras.
Reconhecemos, sempre em sua obra, os signos do sagrado na fronteira do universo cotidiano e do espaço espiritual. Num grande diptico vemos, como nas pinturas da idade média, que o personagem nu representa o pagão ou o pecador; aqui, no painel á direita, uma mulher nua esconde seu sexo e seu rosto, próximo dela, uma mulher ajoelhada chora, mas os transeuntes passam por ela sem a perceber; ela esta só na multidão – e este é o tratamento humano que ele da ao desprotegido ou ao pecador. Ainda um desenho em traço branco ultrapassa os dois painéis, representa uma mulher deitada: seria ela a imagem de um sonho ou de uma memória do pecador? Outras figuras se misturam e pedem também para serem decifradas.
Eva expulsa do paraíso! É a vergonha que se apoderou dela depois do pecado? Há muita pintura nesta tela, mas há também uma figuração narrativa que clama por meditação. É bíblico, o homem belo feito a imagem e semelhança de Deus, por isso ele endeusa o homem e humaniza Deus. O resultado é um trabalho decorrente da sua vivência religiosa e laica, que produz formas investidas de sexualidade, pois são humanizadas.
Também encontramos em Baudelaire esta mesma ambigüidade, entre a ordem do religioso e a ordem do poético, pois a poesia é um ato de conhecimento e um “meu coração desnudado”, produtor de linguagem á partir dessa consciência dilacerada e que sempre recai no tema do mal ou do pecador: As flores do mal.
Desde o inicio de sua carreira profissional de artista plástico, Jair se preocupou com os aspectos pedagógicos da arte. Participou da criação do Circulo de Artes Plásticas do Paraná juntos á outros colegas recém-formados da Escola de Belas Artes e foi professor de educação artística durante muito tempo. Estes fatos, mais a sua formação acadêmica, lhe fazem um conhecedor da história da arte e assim, sua obra é uma forma de síntese dos artistas do passado que trabalharam com profundidade as relações entre o sagrado e o profano, a realidade da arte e a realidade da sociedade.
Sensível ao mundo e também ao mundo da arte encontrou nas obras de Jair referências, por exemplo, a um pintor humanista, cristão e trágico como caravaggio que pintou a tragédia da encarnação de Deus na história, no exemplo de Cristo na humanidade sofredora. Procurou a presença do sagrado nos objetos mais simples e nas ações mais corriqueiras.
Essa religiosidade afetiva de Caravaggio, incluindo a sua simplificação das formas, mas sem perder o caráter de realidade, é o que podemos ver em quase toda a obra de Jair, inclusive nas suas paisagens e naturezas mortas, pois elas não ficam sozinhas por muito tempo, o quadro sempre grita pelo personagem humano, e por detrás d
as paisagens ou das flores vão desfilando pessoas pintadas vigorosamente, com contornos grosseiros como se tivessem sido talhadas, sugerindo personagens cheios de um realismo ferido e insuflado pelos movimentos da sua própria vida.
O valor moral dos indivíduos simples que, muitas vezes, independente da sua vontade, fazem parte do espetáculo do mundo é o tema de Toulouse-Lautrec, como ele Jair também tem suas crenças, seus modos de vida, sua moral e que, por vezes, é incitado a se exprimir em total oposição a estes compromissos. É uma arte que, reproduz a vida, seja na sua necessidade vital ou na sua finalidade social, é como imitação de uma realidade inteiramente transformada em espetáculo que o artista resolve plasticamente com o domínio do seu métier.
Mas a resistência à abstração na obra de Jair Mendes tem a ver, também, com as vanguardas artísticas dos anos 60, o confronto, de um lado, como o Expressionismo abstrato e de outro com a Pop Art. Esta arte descontraída, espontânea, expressiva e intensa que ele produz Téo propósito de, se apropriando das linguagens da comunicação de massa, interrogar de forma obsessiva o mal estar do mundo e a necessidade de resistir a ele através da forma.

Certa vez um amigo seu disse que, talvez “por timidez – ou, por não ter tido ainda a coragem de tudo dinamitar com a tinta, fazendo explodir aquela força bruta de seu talento”. Jair sempre pintou o prazer com o prazer, pintou o homem e, principalmente, as mulheres, mesmo que nelas sempre restassem qualquer coisa de nostálgico, a sua pintura é um culto à mulher e que nos lembra as palavras de Jean Cassou: “aquela que, sob qualquer aspecto que o destino a obriga a se apresentar, continua sempre a mais maravilhosa das criaturas”.
Se anteriormente Jair não tinha coragem agora, com a mostra, ele se tornou um vulcão em erupção. Suas novas pinturas, trabalhadas com a transparência das cores, talvez numa metáfora do vidro, são camadas não estabilizadas de tintas que se movem; sobre essas camadas entre o grafismo, que é a sua grande tradição do desenho e que ele mantém com maestria. O grafismo sempre faz surgir à figura humana que por vezes se fragmenta ou se dissolve na pintura. O desenho se torna então arabescos, entrelaçados, que produzem rostos ou fragmentos de corpos. Agora nada mais é estável, surgem corpos desmembrados, desenhados com o próprio tubo de tinta, com forte entonação erótica. A matéria pictórica sublimada, enobrecida, é penetrada pela luz e sensibilizada pela espiritualidade especial do artista.
Há paisagens líricas, naturezas mortas construídas com a cor, mas há figuras humanas, de trabalhadores, de sofredores e as belas mulheres, seres privilegiados por Jair, que, se são prostitutas aviltadas, têm nobreza de alma e a discreta grandeza de heroínas.
A cor é utilizada no sentido expressionista, ela plastifica as figuras das quais os artistas tira proveito somente dos efeitos de nuances cromáticas, exagerando no grafismo quase caricatural – um místico romântico de inspiração primitiva, quase um bárbaro.
É a pintura que o conduz, seja para a tragédia ou para o sonho. Pinta ainda o costume de seu tempo, mas não é um frio moralista nem um satírico, é amargo e duro porque conhece a ferocidade de um mundo do qual também faz parte.
O erotismo de seus quadros começa na representação de imagens profanas, por vezes, por vezes retiradas contexto religioso, são sugeridas pela idealização artística de beleza do corpo humano. Tudo é acompanhado pelo trabalho sensível sobre a matéria, que neste momento se tornou mais espessa e mais rica, cujas camadas se sobrepõem irregularmente. O desenho vem em paralelo simplificando a forma e separando as marchas: “boina preta, roupa vermelha, fazem belas manchas de cores”. (Rouault)
A obra de Jair Mend
es é um canto, quase um grito; é uma Ópera realista, trágica ou cômica, ópera séria ou ópera bufa, mas sempre ópera; ele mesmo gosta de cantar, no seu corpo corre o sangue dos Rondinelli, do Scala de Milão; sua preferência é a ópera romântica e é, justamente, na concepção que o romantismo faz do amor que encontramos a mais clara assimilação entre o sagrado e o profano, mas é de pintura que estamos falando:
“Não há pintura que não seja, quer queiramos ou não, representação fraternal; a que faz referência ao espelho, a que tem relação com o outro ou com outro sexo, que é a matéria de nosso pensamento, infinita criação de nossa concepção de mundo” (Eugene Leroy, pintor).Jair Mendes proprietário de um desenho e de um traço invejável é mais um dos pintores que afirma com veemência que a pintura ainda existe e que é necessário resistir. Mesmo que ela se torne visceral, que penetre em suas entranhas, como agora, que ela sai de lá revitalizada, fortificada para o prazer de nossa fruição estética, pois esta é uma das razões que fazem aparecer o valor da arte. Na exposição que Jair fez em Julho/2005 em Curitiba/PR a pintura e ele são um só, lembrando Klee; é o artista no melhor momento de sua criação quando seu traço incisivo e forte se mistura com a matéria e a cor que nos fazem pensar se Jair já não está procurando as soluções da abstração lírica.


Fernando A. F. Bini - Professor de História da Arte, Pesquisador e critico de Arte - Maio de 2005

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